segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Práticas culturais: é possível estudá-las em laboratório?

Na Psicologia, muitos dizem ser impossível desvendar os mistérios da mente através do método científico - devido à própria natureza deste objeto. Se há quem aposte nisso, o que diriam então sobre o estudo científico de uma cultura, das diversas práticas que a compõem e seus produtos resultantes? Segundo o antropólogo Marvin Harris (1978, p. 13), “os especialistas se empenham em demonstrar que nem a ciência nem a razão podem explicar as variações de estilos de vida da humanidade”. Embora parte importante da obra de Skinner trate do tema, houve décadas sem produção significativa. No entanto, a partir dos conceitos de cultura e metacontingências propostos por Glenn (1986, 2004), finalmente os analistas do comportamento têm voltado sua atenção para o assunto. E o melhor de tudo: não só conceitualmente, mas também experimentalmente.

Pode-se definir de forma sucinta uma cultura como “padrões de comportamento aprendido transmitidos socialmente e também os produtos deste comportamento (objetos, tecnologias, organizações etc.)” (GLENN, 2004). Quanto a sua possível unidade de análise, a metacontingência, no lugar de serem selecionados propriamente comportamentos individuais, são selecionadas certas contingências entre duas pessoas ou mais (contingências comportamentais entrelaçadas ou CCEs) – interações que funcionam como uma unidade integrada, permitindo modificar o mundo de uma maneira que dificilmente ou até mesmo não seria possível para um único indivíduo, gerando e definindo, assim, um produto cultural (produto agregado ou PA). Assim, o comportamento de cada pessoa exerce um duplo papel: de ação e de ambiente comportamental para a ação de outrem (GLENN apud GADELHA, 2010). Além disso, tais interações e PA surgem, modificam-se ou permanecem inalterados (ou seja, são selecionados) por suas conseqüências relevantes para o grupo. Com a ocorrência de um PA e a recorrência sistemática da CCE devido a conseqüências culturais, fala-se então em seleção (GADELHA, 2010).

Faz-se necessário ainda diferenciar metacontingências de macrocontingências. Se em uma metacontingência a conseqüência social é crucial para a sua seleção, em uma macrocontingência há a relação entre uma prática cultural e a soma agregada das consequencias do comportamento recorrente de cada pessoa, que, por sua vez, são mantidos (ou modificados) por seus efeitos para cada indivíduo – e não para o grupo. Por exemplo, ao falarmos do macrocomportamento de “dirigir para o trabalho”, a função entre dirigir e as conseqüências operantes do comportamento de cada pessoa é o que a mantém comportando-se dessa maneira recorrentemente. Por outro lado, milhões de pessoas dirigem com inúmeras funções, o que gera um efeito cumulativo (e.g., trânsito congestionado, poluição etc.) que não é contingenge ao comportamento de nenhum motorista, mas sim ao macrocomportamento da prática cultural (GLENN, 2004).

Há quem possa levantar as seguintes questões: Ok, aqui temos um conceito para definir práticas culturais, mas em que isso nos ajuda? E mesmo assim, como estudar uma prática cultural experimentalmente? A produção em análise experimental da cultura surgiu e tem crescido nos últimos anos, a exemplo de estudos como o de Vichi (2004), Martone (2008), Baia (2008), Nogueira, C. (2009), Andreozzi (2009), Bullerjhan (2009), Caldas (2009), Leite (2009), Oda (2009), Costa (2009), Nogueira, E. (2010), Lopes (2010), Gadelha (2010) e Silva (2011), entre outros, que vêm demonstrando ser possível o desenvolvimento de análogos experimentais de metacontingências e práticas culturais. Os experimentos, de maneira geral, são feitos com pequenos grupos (geralmente de duas a quatro pessoas), sendo compostos por estudantes universitários voluntários. É proposto um jogo ou resolução de problemas individualmente (comportamento operante) e/ou em grupo (CCE). No caso das CCEs, a conseqüência cultural e o produto agregado dependem não do efeito cumulativo das respostas individuais, mas sim do comportamento inter-relacionado dos participantes (GLENN, 2004). Como conseqüência cultural se utilizava fichas (ou bônus) que seriam posteriormente trocadas por dinheiro e o produto agregado variava de experimento a experimento (dependia da tarefa realizada).

No trabalho de Gadelha (2010), e. g., voltado para os estudo das conseqüências culturais, foi desenvolvida uma atividade, onde pontos eram a consequência individual para fazer somas com resultados ímpares; uma CCE possível consistia em os dois participantes realizarem somas, de modo que o resultado do Participante 2 fosse o quadrado do resultado do Participante 1, que constituía o produto agregado (ΣP1 = (ΣP2)²), e a consequência desta CCE era a produção de uma grande quantidade de bônus distribuída igualitariamente entre ambos. Os participantes eram substituídos por outros sem experiência anterior com a atividade, de tempos em tempos, para a verificação da transmissão da prática por sucessivas gerações. Os resultados indicam que foi possível estabelecer uma CCE em laboratório, sendo transmitida para novas gerações (o que define uma prática cultural).

No estudo de Nogueira, E. (2010), utilizou-se a Teoria dos Jogos e, especificamente a situação do Dilema dos Comuns – “há um recurso comum para o qual várias pessoas podem ter acesso” (NOGUEIRA, 2010, p. 15), onde o dilema ocorre entre o ganho individual em curto prazo e o ganho comum em longo prazo. A autora investigou os conceitos de macrocontingências e metacontingências, além dos efeitos de uma intervenção cultural em uma situação onde o ganho individual poderia diminuir drasticamente ou extinguir o recurso comum. O objetivo era intervir em escolhas individuais (macrocomportamento), além de aumentar a interação verbal entre os participantes (intervenção cultural), procurando resultar na produção de CCEs (modificação da prática). Era apresentado aos três participantes um cenário onde havia um tanque com 100 peixes disponíveis, os quais poderiam ser “pescados” através de mini-cartões (que possibilitavam a retirada de 2, 4 ou 6 peixes). Os animais que ficassem reproduziam-se e a nova quantidade era informada. Se, ao final de uma condição, sobrassem peixes, eles seriam divididos igualmente entre os participantes – e cada peixe era trocado por uma quantia de R$ 0,03. Quanto maior a retirada e ganho individual, maior a diminuição na quantidade. Na linha de base, não havia conversa e os participantes não sabiam das escolhas de outrem. Nas condições seguintes, tiveram acesso a esses valores e o diálogo passou a ser permitido a cada duas escolhas. Os resultados indicam que o reajuste na quantidade de peixes teve função de conseqüência cultural externa para CCEs e PA (total de peixes). Nos grupos sem conversa (linha de base), houve esgotamento de recursos. Onde foi permitida a interação verbal, em que outro entrelaçamento das escolhas, os recursos aumentaram, mesmo com a retirada da condição (interação verbal), demonstrando que foi possível alterar a prática cultural, ou seja, que a intervenção foi efetiva – evitando o esgotamento total do recurso.

Os estudos supracitados foram explanados de maneira sucinta, não abarcando todos os resultados e análises possíveis diante dos dados obtidos em ambos. Porém, servem-nos como uma visão geral de como uma prática cultural pode ser estudada em laboratório. Mesmo assim, há quem questione a utilidade de tais experimentos – questionamento comum aos que produzem pesquisa básica em geral. Segundo Selltiz, Wrightsman e Cook (1987) existem três razões básicas para aprender métodos de pesquisa e praticar ciência: adquirir a capacidade de predizer como pessoas e nações se comportarão; entender como funciona o mundo social (descobrindo relações causais); e aprender a controlar os eventos. Aqui chegamos ao ponto do planejamento cultural! Para sermos capazes de planejar práticas efetivas, devemos entender como funcionam e o laboratório nos dá uma importante base para isso. Os analistas do comportamento podem ainda não ser capazes de realizar um planejamento cultural conforme se depreende da obra skinneriana “Ciência e Comportamento Humano”: “propor uma mudança em prática cultural, fazer a mudança e aceitar o mudado” (p. 464, 2003), mas, sem dúvidas, estão sendo dados os primeiros passos rumo a esta direção.

Bibliografia:

Andreozzi, T. C. (2009). Regras de controle tecnológico e de controle cerimonial: efeitos sobre práticas culturais de microssociedades experimentais. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília, Brasília.

Baia, F. H. (2008). Microssociedades no Laboratório: o efeito de conseqüências ambientais externas sobre as contingências comportamentais entrelaçadas e seus produtos culturais. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília, Brasília.

Bullerjhann, P. B. (2009). Análogos experimentais de evolução cultural: o efeito das consequências culturais. Dissertação de Mestrado. PUC-SP, São Paulo.

Caldas, R. A. (2009). Análogos experimentais de seleção e extinção de metacontingências. Dissertação de Mestrado. PUC-SP, São Paulo.

Costa, D. C. (2009). Dilema do prisioneiro: efeitos das consequências individuais e culturais. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília, Brasília.

Gadelha, T. C. (2010). Evolução cultural em análogos experimentais de metacontingências: seleção de diferentes produtos agregados. Dissertação de Mestrado, PUC – SP, São Paulo.

Glenn, S. S. (2004). Individual behavior, culture and social change. The Behavior Analyst, 27 (2), 133-151.

Glenn, S. S. (1986). Metacontingencies in Walden Two. Behavior Analysis and Social Action, 5, 2-8.

Harris, M. (1978). Vacas, porcos, guerras e bruxas: os enigmas da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 13-16.

Leite, F. L. (2009). Efeitos de instruções e história experimental sobre a transmissão de práticas de escolha em microculturas de laboratório. Dissertação de Mestrado. UFPA, Belém.

Lopes (2010). Um análogo experimental de uma prática cultural: efeitos de um produto agregado contingente, mas não contíguo, sobre uma contingência de reforçamento entrelaçada. Dissertação de Mestrado. UFPA, Belém.

Martone, R. C. (2008). Efeitos de conseqüências externas e de mudanças na constituição do grupo sobre a distribuição dos ganhos em uma metacontingência experimental. Tese de Doutorado. Universidade de Brasília, Brasília.

Nogueira, C. P. V. (2009). Seleção de diferentes culturantes no Dilema do Prisioneiro: efeito da interação entre a cosequência cultural, escolhas simultâneas e a comunicação. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília, Brasília.

Nogueira, E. (2010). De macrocontingências à metacontingências no jogo Dilema dos Comuns. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília, Brasília.

Oda, L. V. (2009). Investigação das interações verbais em um análogo experimental de metacontingência. 2009. Dissertação de Mestrado, PUC – SP, São Paulo.

Selltiz, C., Wrightsman, L., & Cook, S. (1987). Explorando o mundo social. In: Kidder, L. H. (Org.). Métodos de Pesquisa nas Relações Sociais (vol. 1, ed. 4, pp.1-10). EPU: São Paulo.

Silva, N. C. S. (2011). Custo da resposta no jogo Dilema dos Comuns: análogo experimental de macrocontingências. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília, Brasília.

Skinner, B. F. (2003) Ciência e comportamento humano. São Paulo: Martins Fontes. 

Vichi, C. (2004). Igualdade ou desigualdade em pequeno grupo: Um análogo experimental de manipulação de uma prática cultural. Dissertação de Mestrado, PUC – SP, São Paulo.

9 comentários:

Júlia Ferraz disse...

Estou muito feliz com a primeira publicação! Devo muito a várias pessoas que me ajudaram com suas dicas e críticas! Obrigada ao Neto, Elayne, Angelo, Mariana, David e Bruna!!

Jacqueline Iukisa disse...

Adorei o texto, e não imaginava uma temática melhor a ser abordada por você logo na primeira postagem! O mais legal disso tudo é saber que nós brasileiros estamos contribuindo fortemente com nossas pesquisas sobre cultura na AC.

Neto disse...

Parabéns Júlia! Estou muito feliz por tê-la na equipe. Sabe que te admiro muito enquanto pessoa e estudante de AC. Você vai longe!

Júlia Ferraz disse...

Que bom que gostou, Jacque! Nossas sextas a tarde discutindo o tema não foram em vão - nem os trabalhos que estão sendo feitos pelo Brasil! =D

Júlia Ferraz disse...

Obrigada, Neto! Parabéns a você pelo blog! =D

L. Florentino disse...

Li, gostei, e nem precisaria escrever o que estou prestes a dizer, pq você sabe disso: você é meu orgulho, Jú! =)
Fiquei muito feliz quando soube que vc faria parte do "comporte-se".
Ao ler o texto, lembrei muito das reuniões que participei com vocês no projeto do Angelo, bem como de alguns dos artigos que lemos juntos.
É um privilégio ter ótimos professores e excelentes amigos que se dedicam à AC.
Você vai longe..
Parabéns pela postagem! ;D

Lucas André de Paula disse...

Muito bom o texto Amanda, porém há de se questionar alguns vieses da pesquisa laboratorial da cultura. Primeiramente é que quando se fala em levar ao laboratório, quer dizer " controle de variáveis", e ao fazer isso, vc automaticamente retira ou modifica alguns reforçadores e estímulos, que se tornarão artificiais tomando uma postura reducionista do fenômeno social, onde a gama de metacontigencias é infinita.

Há métodos de investigação do social e da cultura atualmente que não são exatamente o laboratório, e com excelente consistência científica. Desde a década de 80, efervesceram críticas metodológicas ao modelo laboratorial de investigação socio-cultural e a partir daí há delineações que passam desde a investigação de sentidos subjetivos e métodos de investigação dentro dos contextos sociais, que são altamente uteis. Inclusive, eles agregam métodos objetivos e laboratoriais, no processo de investigação.

A pesquisa laboratorial é fundamental, na medida em que ela nos dá marcadores de proximidade da realidade cultural. Mas devemos ter o cuidado de não engessarmos as infinitas possibilidades que o social e o cultural permitem, ao investigarmos em campo, em interação direta com a produção de sentidos culturais.

Júlia Ferraz disse...

Luiz, meu reizinho! Muito obrigada! Fiquei extremamente feliz com o apoio de meus amigos nesse novo momento!

Júlia Ferraz disse...

Olá, Lucas André.
Na verdade meu nome é Júlia, não Amanda. =)
Fico muito contente pela leitura e comentário relevante. E agora comentando o comentário, é inegável a importância dos estudos da cultura in natura, além da variedade infinita de práticas culturais existentes e da riqueza e idiossincrasias de cada uma delas – e nisso concordo plenamente com você. Porém, vale ressaltar que o estudo da metacontigência pretende analisar uma possível unidade de análise (no caso, a própria metacontingência) para o estudo da cultura, não excluindo outras possibilidades, mas propondo-se a ser uma maneira efetiva de entender o funcionamento, as implicações e possibilidades de mudança de práticas humanas. Ou seja, enquanto unidade de análise, não se busca engessar tais práticas, nem se quer adequá-las, enquadrá-las dentro do conceito de metacontingência – e aqui se encontra o objetivo dos estudos laboratoriais: analisar tal unidade de análise como eficiente ou não no estudo da cultura, se o conceito em si se adéqua ao seu estudo.
Embora os estudos evoluam ano a ano e os resultados apontem para uma possível efetividade no uso do conceito, os analistas do comportamento (pelo menos, a maioria deles) ainda não estão em plenas condições de se dispor a fazer uma intervenção ou mesmo um estudo in natura e busca-se justamente em laboratório a base para tal. Para que talvez fique mais clara a importância de tais estudos, vou lhe falar um pouco sobre a contingência. Estuda-se em laboratório o comportamento operante, partindo-se do pressuposto de que há uma relação de contingência (se...então...) entre o que um indivíduo faz e as alterações ambientais decorrentes desta resposta. Os resultados apontam para uma relação funcional aplicável a uma infinidade de diferentes comportamentos, não os engessando, nem sequer obscurecendo a possibilidade de novos comportamentos acontecerem. De maneira similar, acredito eu, ocorre com a metacontingência: o estudo laboratorial procura similaridades funcionais nas mais diversas práticas – aquelas que, obviamente, podem ser estudadas em laboratório devido a uma menor complexidade. Mas seguindo o raciocínio de como ocorre com a contingência, acredita-se que há sim alguma regularidade no funcionamento das práticas humanas, o que não exclui a singularidade e a riqueza de que cada uma dispõe. Em suma, acredito que o controle de variáveis não se coloca como uma barreira, mas sim como uma importante e imprescindível ferramenta para essa compreensão da cultura.
Outro ponto importante é quanto aos estudos in natura. O gostaria que você respondesse uma questão relevante apontada por uma colega do blog: Quais são os métodos atuais que tenham consistência científica pra estudar fenômenos sociais fora do laboratório? Talvez se puder nos esclarecer tal questionamento possamos continuar e enriquecer a nossa discussão.
Grata!

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