quarta-feira, 28 de março de 2012

Análise Comportamental da religiosidade


Seria de se esperar que a evolução humana fosse acompanhada pelo investimento cada vez maior no raciocínio lógico e na ciência, e pelo abandono de práticas místicas. Porém, a crença em forças consideradas de ordem superior, criadoras do universo, constitui uma característica presente entre povos das mais diversas culturas e ao longo de diferentes períodos históricos (Rodrigues & Dittrich, 2007).


Tais condições suscitam algumas questões ao analista do comportamento: O que mantém comportamentos religiosos particulares, tais como o ato de rezar privadamente, ou padrões culturais que envolvem o comportamento entrelaçado de diversos sujeitos, tais como rituais de consagração a deuses? Quais os motivos pelos quais a adesão a religiões permanece como prática compartilhada por tantos indivíduos, nas mais diversas culturas? Que contingências favorecem o surgimento e manutenção de práticas religiosas? Há alternativas mais vantajosas do ponto de vista do indivíduo e da cultura para o controle exercido pela religião?

Em uma perspectiva evolucionista, a manutenção de práticas religiosas nas mais diversas culturas ao longo do tempo permite-nos inferir que tais práticas provavelmente têm valores adaptativos importantes. Nessa perspectiva, autores tais como Houmanfar, Hayes e Fredericks (2001) discutem a importância da religião para a sobrevivência das culturas. Skinner (1953/1981), por sua vez, discute a religião enquanto uma agência de controle do comportamento humano, apontando, em uma análise comportamental (individual), as vantagens e desvantagens dessas relações de controle.

Porém, afora algumas poucas publicações, de um modo geral pouca atenção vem sendo dada, na Análise do Comportamento, à discussão da religião (enquanto agência de controle) e da religiosidade (aqui entendida como o conjunto de comportamentos verbais e não verbais e/ou práticas culturais reproduzidas por um grupo social ou um membro desse grupo, isoladamente). Com frequência, esses tópicos são indiretamente tratados no âmbito das discussões sobre “comportamento supersticioso”, de tal modo que o comportamento religioso é abordado enquanto um comportamento cujo responder é controlado por eventos subsequentes independentes da resposta.

Porém, como destaca Herrnstein (1966), os rituais religiosos não são arbitrários, como o comportamento supersticioso originalmente descrito por Skinner (1948), e sim produtos de uma aprendizagem social. Assim, como exemplifica aquele autor, a crença na transubstanciação por parte de um católico particular, por exemplo, não é adquirida por meio de uma relação acidental entre o responder do indivíduo e um evento ambiental reforçador, e sim por meio de reforços mediados pela cultura.

Além de não serem necessariamente arbitrários, outra diferença que pode ser apontada entre comportamentos supersticiosos e comportamentos e práticas religiosas é o fato de esses últimos, contrariamente aos primeiros, serem frequentemente permanentes (no sentido de que recorrem, ao longo do tempo).

Além disso, como bem apontou o personagem fictício Gottlieb, cristão ortodoxo do diálogo proposto por Rodrigues e Dittrich (2007), “é equivocada a consideração de que todos compreendem suas práticas religiosas da mesma maneira” (p. 528). Diferentes cristãos, embora possam reproduzir as mesmas práticas, podem estar sob controle de variáveis diferentes.

Partindo dessas considerações, a análise da religiosidade tendo em vista um processo comportamental único, que estaria na base de todas as práticas religiosas, pode se constituir uma alternativa por demais limitada para a compreensão do fenômeno. Embora processos de seleção e manutenção de respostas por eventos subsequentes independentes possam compor o complexo arranjo de contingências que constituem a religiosidade, seu caráter eminentemente social sugere que, para sua análise, faz-se necessário considerar outras possíveis relações de controle subjacentes a esse fenômeno comportamental/cultural.

Entende-se que propostas de análise que atentem, ao mesmo tempo, para o caráter aparentemente supersticioso e socialmente mediado dos processos de aquisição e recorrência de comportamentos e práticas religiosas podem constituir alternativas adequadas à discussão dos fenômenos em questão.

Na medida em que favorecem a compreensão das relações de controle presentes na religiosidade, tais análises ampliam as possibilidades de previsão e controle de uma parcela importante de comportamentos individuais e de práticas culturais. Dentre outras implicações, o conhecimento de tais relações pode favorecer o desenvolvimento de tecnologias comportamentais em contextos individuais (como na clínica), ou sociais (para o planejamento e/ou intervenções culturais).

Referências

Herrnstein, R. J. (1966). Superstition: a corollary of the principles of operant conditioning. In W. K. Honig (Ed.), Operant Behavior: areas of Research and Application (pp. 33-51). New York: Appleton-Century-Crofts.

Houmanfar, R., Hayes, L. & Fredericks, D. (2001). Religion and cultural survival. The Psychological Record, 51, 19-37.

Rodrigues, T. S. P. & Dittrich, A. (2007). Um diálogo entre um Cristão Ortodoxo e um Behaviorista Radical. Psicologia Ciência e Profissão, 27 (3), 522-537.

Skinner, B. F. (1948). "Superstition" in the pigeon. Journal of Experimental Psychology, 38, 168-172. Skinner, B. F. (1981). Ciência e Comportamento Humano. (J. C. Todorov & R. Azzi, Trads.). São Paulo: Martins Fontes, 5ª. ed. (Originalmente publicado em 1953).

10 comentários:

Felipe Leite disse...

Parabéns Naty! Gostei bastante do texto. =)

Natália Marques disse...

Que bom, Felipe, obrigada! =)

Rodrigo Marquez disse...

Parabéns Natália! Acho que já tem gente por aí utilizando para outros fins o "arcabouço teórico" criado por algumas religiões. Você já foi em uma reunião da Herbalife? :P

Daniel F. Gontijo disse...

Texto bacana, Natália! Escrevi algo sobre a religião como agência controladora há um tempo atrás, e também citei o artigo de Rodrigues e Dittrich: http://bulevoador.com.br/2011/12/31094/

Acho que esse é um campo fértil para estudos. Estou querendo muito me enveredar por aí... Se quiser trocar algumas figurinhas, só me procurar!

Abraço!

Natália Marques disse...

Olá Rodrigo!
Nunca fui a uma reunião, mas já ouvi descrições a respeito. Vc acha que eles utilizam "arcabouço teórico" de alguma religião? Conta mais pra gente! rs
Abraços

Natália Marques disse...

Oi Daniel!
Concordo que seja um assunto fértil! Não consegui abrir o link para o seu texto. Me manda um e-mail, para conversarmos mais sobre isso.
nataliamarq@yahoo.com.br
Um abraço!

Anonymous disse...

Natália, parabéns pelo texto.

Concordo que a religiosidade talvez tenha valores adaptativos importantes, mas quais são? Quais são as vantagens e desvantagens , quais são os ganhos do sujeito para que os comportamentos religiosos se mantenham?

Discordo que comportamentos religiosos sejam comportamentos cujo responder é controlado por eventos subsequentes independentes da resposta. Discordo também que o comportamento seja mantido por meio de reforços mediados pela cultura, esses reforçadores não são tão reforçadores quanto ganhos mais acentuados como, por exemplo, uma graça alcançada por meio de uma reza.

ABS

Harley Pacheco de Sousa

Isadora Peresi Ferrari disse...

Natália!! Parabéns!!
Muito legal saber um pouquinho sobre como a Ac tenta enxergar a religiosidade/religião.

Quando você sugere ganhos por se engajar em comportamentos religiosos me fez lembrar de um estágio de graduação, em que atendia pacientes renais crônicos. Era muito peculiar a função que a religião assumiu nessa situação, e talvez o grande ganho fosse o reforço social. Era muito frequente na fala deles que a comunidade religiosa dava muito apoio à família, faziam visitas frequentes, colaboravam com doações, além de apontarem o apego à religião como busca por um acolhimento e por justificativas, explicações para a situação em que viviam.

Um outro ponto que me gerou questionamentos foi quando você fala sobre questões adaptativas, e isso me remeteu imediatamente à sobrevivência da especie humana. Somos seres fisicamente fracos, e a organização em comunidades foi um diferencial para o estabelecimento do que hoje entendemos como cultura. A nossa história, enquanto "herdeiros" da cultura judaico-cristã também evidencia o carater adaptativo do envolvimento em práticas religiosas. Nesse sentido, a religião tinha predominantemente a função de manter a coesão civil dos judeus, e organização militar de um povo que havia passado por inumeras situações dizimadoras. E o ponto de vista do Skinner, bem como de outros teóricos, se insere justamente na questão de controle, né. Muito gostoso ter acesso ao ponto de vista de outros autores, e que tem pontos de vista tão controversos.



O tema é polêmico, sobretudo para nós, que mesmo AC, não deixamos de estar inseridos numa cultura ou crença religiosa, pois aparentemente dicotomiza a religião enquanto comportamento e enquanto "sentimento", haja vista a pontuação do colega HPS. Para tentar entender é importante frisar que o tema tratado é um recorte, analisado sob o ponto de vista de uma corrente teórica, no caso, a análise do comportamento, Ou seja, mostra como ela trata do assunto. Outras correntes, como por exemplo a filosofia, a psicanálise, as próprias correntes religiosas terão pontos de vista distintos tão importantes e interessantes quanto possível, e isso tudo dentro da nossa cultura. Se passarmos por culturas distintas da nossa, a maneira de abordar o tema também muda, como também mudam as funções que isso tem para os comportamentos deles.

A ciência ainda se distancia das questões religiosas, acredito eu que muito pela dificuldade do pensamento humano em operacinalizar conceitos tão abastratos. Não sei se um dia isso será pssível, enquanto isso, parabéns por trazer um tema tão importante para nós, e evocar questionamentos e análises, sobretudo dentro de um cotidiano, no meu caso, clinico. Muitos pacientes trazem questões religiosas, e saber mais sobre como a Ac trata isso abre portas para melhor compreender sobre o ser humano e sua relação com o ambiente. Um bração!

Natália Marques disse...

Olá Isadora!

Muito grata pelo comentário, que por demais contribuiu à nossa coluna!

Concordo com as suas colocações. Esse realmente é um tema polêmico e, como você destacou, ainda distante das nossas discussões. Desse modo, nenhuma de minhas publicações terá a pretensão de esgotar o assunto, tampouco gerar exclusivamente concordâncias. Portanto, espero que mantenhamos as discussões para os textos futuros.

Como mencionei acima, o próximo texto da coluna está previsto para ser publicado essa semana.

Um grande abraço!

Amanda Barroso disse...

Excelente discussão, Naty! Adorei o texto, parabéns. Eu não poderia deixar de questionar também o fato de que para alguns esse reforço social não reforça (rsrs) quando, por exemplo, temos um ateu - que, na minha opinião, tb é reforçado socialmente pelos indivíduos que compartilham da mesma visão - porém, acho que poderia ser interessante discutir esse tipo de relação: uns seguem a religião X, outros a Y e outros são ateus. O que ocorre com a cultura? O Brasil é um país oficialmente católico, porém existem outras diversas religiões e formas de religiosidade que se apresentam...enfim, fica como sugestão para a coluna! Beijo! Mandy

Postar um comentário