domingo, 25 de março de 2012

Metacontingência: necessária ou não?

“Aplicar nossa análise aos fenômenos do grupo é um modo excelente de testar sua adequação, e se formos capazes de explicar o comportamento de pessoas em grupos sem usar nenhum termo novo ou sem pressupor nenhum novo processo ou princípio, teremos demonstrado uma promissora simplicidade nos dados”. 
B. F. Skinner (1953/2003, p.326) 

Diante desta citação do livro Ciência e Comportamento Humano, falar em metacontingências – conceito cunhado por Sigrid Glenn (1986) para tratar do estudo da cultura – pode parecer um retrocesso. Sua necessidade ou relevância ainda são explícitas para alguns analistas do comportamento, embora estudos venham sendo exaustivamente realizados, mostrando a metacontingência como “um conceito que auxilia na visibilidade acerca da seleção de práticas culturais” (Gusso & Kubo, 2007, p. 141). 

Em primeiro lugar, metacontingências não tornam um novo campo de análise possível (Carrara apud Gusso & Kubo, 2007), pois a análise da cultura já era contemplada através das contingências de reforçamento, não sendo novidade na Análise do Comportamento (Gusso & Kubo, 2007). Além disso, “o estudo e debate sobre esse conceito não diminuíram a relevância das noções de ‘comportamento’ e de ‘contingência de reforçamento’, e qualquer análise cultural dependerá dessas noções básicas da Análise do Comportamento para se concretizar” (Gusso & Kubo, 2007, p. 143). De acordo com Carrara (apud Gusso & Kubo, 2007), talvez o conceito de metacontingências possa aperfeiçoar as análises e sínteses culturais. Nesse sentido, deve-se questionar: “a noção de metacontingência torna mais eficiente a análise de fenômenos culturais?” (Gusso & Kubo, 2007, p. 142-143); ou seja, ela realmente torna os analistas do comportamento capazes de intervir em uma prática cultural, planejá-la e modificá-la? 

O conceito descreve relações funcionais que envolvem certas contingências entre duas pessoas ou mais (contingências comportamentais entrelaçadas ou CCEs) e seus produtos. As CCEs não são continências comportamentais alargadas ou a mera soma de comportamentos individuais, pois podem permitir resultados que não seriam obtidos por cada indivíduo isoladamente. Além do mais, vale ressaltar o duplo papel dos que participam de uma CCE, o de emissão de uma resposta e o de ambiente para a ação de outro Aqui entramos na definição de prática cultural (PC), que envolve relações comportamentais que fazem parte do repertório de uma pessoa e são replicadas no repertório de outrem da mesma geração e entre sucessivas gerações de indivíduos (Glenn; Glenn & Malagodi apud Andery et al, 2005). Tais relações comportamentais replicadas podem ser entrelaçadas ou não, em outras palavras, pode se tratar de várias pessoas se comportando de maneira similar, não havendo necessariamente um entrelaçamento entre suas respostas. 


Um exemplo de PC dado por Glenn (2004) é o de um restaurante e seus componentes (proprietários, garçons e outros funcionários). Cada um exerce suas próprias funções, desde cozinhar, servir clientes e gerenciar o fluxo de caixa (vários indivíduos se comportando, cada qual com suas conseqüências imediatas), constituindo uma CCE. Porém, cada operante que compõe a prática não conseguiria o resultado do entrelaçamento dos comportamentos, que é a comida servida rapidamente para os clientes, como também a própria ida dos clientes ao local. 

A partir destas considerações, pode-se olhar para o comportamento de cada indivíduo de duas maneiras: provendo conseqüências para o comportamento do outro (mantendo o comportamento individual – relação de contingência) e, por outro lado, produzindo um produto conjunto (PA) resultado do entrelaçamento dos comportamentos (entrando no campo das contingências culturais/metacontingências). Logo, o estudo da unidade cultural não entraria em choque com a já conhecida contingência de reforçamento, mas surgiria a partir dela. (Assim, para se entender esta unidade pode-se recorrer ao sufixo “meta”, que demonstra uma relação hierárquica, pois metacontingências emergem na evolução cultural constituindo-se a partir de continências comportamentais (Glenn apud Andery& Sério, 2005) – não é possível deixar de lado a noção de comportamento já amplamente aceita. Porém, esta noção não têm se mostrado suficiente nas questões relativas à cultura (Andery & Sério, 2005) e a metacontinência vem se mostrando como candidata em potencial para completar esta lacuna. 

Por fim, vale ressaltar a fundamental importância dos estudos experimentais de metacontingências, pois o conceito só poderá ser acuradamente utilizado em possíveis intervenções culturais como ferramenta do analista do comportamento se for adequadamente estudado. 

Referências: 

Andery, M. A. P. A & Sério, T. M. A. P. (2005). O conceito de metacontingências: afinal, a velha contingência de reforçamento é insuficiente? Em Todorov, J. C.; Martone, R. C.; Moreira, M. B. (pp. 149-159). Metacontingências: comportamento, cultura e sociedade. Santo André: Esetec. 

Andery, M. A. P. A., Micheletto, N. & Sério, T. M. A. P. (2005). A análise de fenômenos sociais: esboçando uma proposta para a identificação de contingências entrelaçadas e metacontingências. Em Todorov, J. C.; Martone, R. C.; Moreira, M. B. (pp. 129-147). Metacontingências: comportamento, cultura e sociedade. Santo André: Esetec. 

Glenn, S. S. (2004). Individual behavior, culture and social change. The Behavior Analyst, 27(2), 133-151. 

Glenn, S. S. (1986). Metacontingencies in Walden Two. Behavioral Analysis and social action, 5, 2-8. 

Gusso, H. L. & Kubo, O. M. (2007). O conceito de cultura: Afinal, a “jovem” metacontingência é necessária? Em: Revista Brasileira de Psicoterapia e Medicina Comportamental, 9, 139-144. 

Skinner, B. F. (1953/2003). Ciência e comportamento humano. 11 ed. São Paulo: Martins Fontes.

5 comentários:

Paulo Gurgel disse...

Tendo a concordar com Gusso e Carrara sobre as reais contribuições do conceito para estudos culturais em AC. Contudo, a discussão é muito recente e temos ainda algum tempo até que possamos melhor avaliar o grau de adequação ao conceito. Isto me lembrou a profiferação de OEs há algum tempo atrás na literatura... Quase chegamos ao infinito...Gosto do modelo elegante e enxuto proposto pelo Skinner, pelo menos até que me provem a necessidade de complicarmos para darmos conta de fenômenos humanos e/ou infra-humanos.

Angelo A. S. Sampaio disse...

Oi, Paulo.

Gosto do seu ceticismo quanto ao conceito. Essa atitude é fundamental para toda ciência.

Contudo, a discussão sobre o conceito de metacontingências não é exatamente recente. O conceito foi proposto inicialmente em 1986 - mais de 20 anos atrás.
Além disso, desde a década passada temos experimentos sendo conduzidos que avaliam variáveis relevantes para metacontingências - consigo lhe citar pelo menos uns 10. Muitas interpretações de fenômenos complexos também tem sido apresentadas valendo-se do conceito - muitas delas, me parece, bem produtivas.

A comparação com o conceito de Operações Estabelecedoras é pertinente também. E as conclusões podem ser estendidas: hoje o conceito de OEs está bem estabelecido na área. Há, é claro, aspectos controversos ainda - toda a parte de OEs Condicionadas, por exemplo. Mas o mais importante é que ambos os conceitos têm instigado mais pesquisa empírica!

Abraços!

Rodrigo Marquez disse...

Parabéns pelo texto, Júlia!

Angelo, eu tenho as mesmas pulgas atrás da orelha que o Paulo. Pensando em intervenções culturais, é possível fazê-las sem a utilização desse constructo. Me soa estranho criar um constructo, refiná-lo conceitualmente e posteriormente investir em estudos empíricos para validá-lo. Sei lá...

cissa disse...

Pensando de forma pragmática, o conceito é útil para guiar a análise de práticas e intervenções culturais, acho que pode ser o caminho mais produtivo para isso. Entretanto, não consigo encarar como um novo construto enquanto o PA surge, dentro das contingências já descritas por Skinner. Afinal, seria mesmo um elemento novo, ou seria o conceito antigo aplicado em novas contigencias?

Fábio Baia disse...

O ceticismo é realmente importante, não só para com conceitos novos, mas de modo geral, isto é, tanto para conceitos novos e antigos quanto para estudos. O ceticismo é parte do repertório comportamental do cientista.
Quanto aos argumentos expostos é preciso lembrar que: (1) o fato de certas intervenções produzirem mudanças culturais alterando apenas contingências de comportamentos individuais não deve ser compreendido como prova de que o conceito de metacontingências é desnecessário. Veja se fizermos alusão ao conceito de operante, também é possível alterar um operante mudando apenas os eventos antecedentes, entretanto, isso não significa que os reforçadores sejam então desnecessários para compreensão dos determinantes do comportamento. De fato, sabemos que sem os consequentes os antecedentes perdem seu valor explicativo. Quando se debate o conceito de metacontingência estamos nos referindo a arranjos de contingências comportamentais (e não de pessoas) que estão para além do comportamento individual. Assim estamos falando de um tipo de arranjo que pode alterar comportamentos individuais sem que necessariamente se altere as contingências individuais. Há situações que alterações culturais são necessárias e podem inclusive, serem mais relevantes do que alterações exclusivamente em contingências de comportamentos individuais. Ao se discutir uma política pública de atendimento da saúde mental estamos diante de arranjos mais amplos do que meramente contingências individuais. Instalar um CAPS-Ad requer mais do que modificar apenas comportamentos individuais. Os atendimentos em CAPS-Ad envolvem a interação de vários agentes e não apenas da praxis de um médico ou psicólogo sozinho. Portanto, retomo a discussão, estamos diante de uma situação em que modificações nas contingências individuais podem ser inefetivas ou mesmo envolverem custo que as tornem inviáveis. É importante então não confundir a necessidade do conceito com meramente a capacidade de modificação de comportamentos em nível individual.
(2) A necessidade do conceito pode envolver o debate da parcimônia na teoria. Vale lembrar, que a parcimônia não é ser simplista. Ser parcimonioso envolve não apenas a análise da quantitade de afirmações de uma teoria. Mas também sua capacidade explicativa , preditiva e de controle do fenômeno investigado. O conceito de metacontingência pode ampliar a quantidade de afirmações na teoria comportamental, porém amplia também suas capacidades explicativas, preditivas e de controle do comportamento ao compreender a atuação de novos determinantes do comportamento no nível cultural.
(3) Os conceitos devem ser avaliados sob condições de teste, em geral empíricos (e não penas lógicos). Neste ponto, temos diversos trabalhos realizados em laboratório cujos resultados empíricos demonstram como o conceito se faz necessário ao se observar que alterações em contingências culturais produzem modificações tanto em comportamentos individuais quanto em práticas culturais. Vale observar o ultimo volume da Revista Latino Americana de Psicologia. Neste são encontrados diversos trabalhos empíricos, há também outros trabalhos disponibilizados em sites de cursos de pós-graduação, como UnB, UFPA, USP e PUCSP.
(4) Os trabalhos experimentais citados acima, se somam aos trabalhos interpretativos e experimentos naturais, que vêem mostrando a validade do conceito de metacontingência para interpretação de fenômenos cujo conceito de operante permitiram compreensão não completa do objeto de estudo.
Em, virtude do exposto, espero ter contribuído para o debate.
Abraços
Fábio Baia

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